Autores: Aureo Ribeiro e Pedro Salomão

Alinhando-se aos demais membros da Organização das Nações Unidas, o Brasil promulgou em 25 de agosto de 2009, como Emenda à Constituição, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [1].

Esse importante marco, além de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro de promover, proteger e assegurar a dignidade e o exercício pleno de todos os direitos e liberdades daqueles que têm alguma deficiência, também torna pública mais uma norma jurídica sobre o tema.

Antes mesmo da ratificação da Convenção, o Brasil já demonstrava esforços para salvaguardar os direitos desse grupo.

Percebe-se no próprio texto da Constituição de 1988 [2] a preocupação de proteger a dignidade e garantir a igualdade de todos os indivíduos, sem qualquer tipo de distinção. Além dessas previsões, diversos outros dispositivos tratam especificamente dessa temática. Por exemplo:

Seguindo essa linha, outras importantes normas foram criadas. Destaca-se a Lei nº 7.853/1989 [3], que cria medidas em defesa das pessoas com necessidades especiais em diversas áreas, como educação, saúde, trabalho, além de cuidar de regras de representação para proteção desse grupo.

Outra lei relevante é a 13.146/2015 [4], também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, onde a intenção é reafirmar e garantir a igualdade desses indivíduos e protegê-los de qualquer espécie de discriminação, negligência, exploração, crueldade ou opressão.

Inclusão e proteção

Analisando em abstrato, não há dúvida do empenho e preocupação do Estado brasileiro, em especial do Poder Legislativo, que analisou e aprovou todos os atos mencionados, em assegurar a inclusão social e proteção desse segmento da sociedade.

No entanto, parte considerável desses esforços é comprometido quando a definição de “pessoa com deficiência” é deturpada e reduzida por regulamentação do Poder Executivo.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, reproduzindo quase que literalmente o texto da Convenção Internacional, crava o seguinte conceito:

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

É importante destacar que houve a atenção de não fazer uma lista exaustiva do que pode ser considerado uma deficiência. A intenção foi delimitar, de forma geral, o que caracteriza essa realidade, que seria o impedimento de longo prazo que obstrui a plena e efetiva participação na sociedade. Restando a uma análise biopsicossocial para avaliar e definir o impedimento.

Essa abordagem evita o constrangimento e a injustiça de alguém que realmente tenha alguma condição restritiva, e necessite de um tratamento específico para ser devidamente integrada na sociedade, ficar à margem do que a Lei prevê, pelo simples fato de um burocrata (legislador ou regulamentador) não ter incluído em um catálogo o nome de sua restrição, seja por um interesse qualquer ou mera ignorância.

Entretanto, a prática no Brasil tem caminhado para uma análise superficial e não especializada de quem deveria ser reconhecido como deficiente, centrada em um critério ultrapassado e limitado do que deve ser considerado como tal. Ignorando barreiras que são enfrentadas diariamente por milhares de brasileiros, o que impossibilita a participação plena na sociedade e o acesso às ações de inclusão.

Prova disso é o Decreto n. 3.298/1999 [5], que elenca em seu artigo quarto o que pode ser considerado como deficiência. Aqui não se critica o que ali está definido, não há dúvidas de que as “categorias” de deficiência ali listadas de fato merecem assim ser consideradas.

Universo além

O problema é desconsiderar um universo que existe além dessa lista, como se tudo pudesse ser resumido em um artigo e cinco incisos e todas as outras pessoas tivessem plena e efetiva participação na sociedade.

Um dos grupos marginalizados é o dos portadores da Diabetes Mellitus Tipo 1 (DM 1). Segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes [6], essa é uma doença causada pela destruição das células ß (beta), localizadas no pâncreas, levando a uma deficiência grave e definitiva na secreção de insulina.

A insulina, por sua vez, é um dos hormônios responsáveis por manter a quantidade adequada de glicose (açúcar) no sangue e o transportar para dentro das células, onde será utilizada como combustível. Sem a insulina as células ficariam sem energia, mesmo existindo uma ampla oferta correndo pelas veias e artérias, e a glicemia subiria de forma perigosa.

Para sobreviver e conseguir ter uma vida comum a pessoa com diabetes tipo 1 precisa desempenhar a função que caberia ao pâncreas, suprindo sua demanda de insulina por meios externos, de modo a equalizar a quantidade de açúcar no sangue. Isso significa monitorar de forma contínua a glicemia e aplicar a quantidade correta do hormônio, além de fazer avaliação clínica e rastrear as complicações crônicas da doença todos os anos [7].

Aqueles que não são pessoas que têm diabetes conseguem manter a glicemia em patamares saudáveis com mais facilidade e de forma natural, tendo em vista que a gestão e consumo da insulina fica a cargo do próprio corpo. Evitando desdobramentos prejudiciais das variações indevidas, como: hipoglicemia, cetoacidose, retinopatia, nefropatia, neuropatia, doença arterial coronariana, doença arterial periférica, doença cerebrovascular, entre outras [8].

A tarefa que a pessoa com  diabetes deve cumprir ao longo de sua vida e evitar complicações é complexa, exige conhecimento da doença e do seu corpo, atenção 24 horas por dia, disciplina e outros cuidados. Esse cenário se agrava quando o portador da DM 1 é uma criança ou adolescente, pois depende de um terceiro para realizar todas as responsabilidades mencionadas.

Há inúmeros relatos de mães-pâncreas [9], mulheres que largam seus empregos e outros compromissos na tentativa de viabilizar direitos básicos para seus filhos com diabetes.

Crianças e adolescentes têm seu direito à educação sabotado pelo fato das escolas, inclusive públicas, não terem estrutura ou planejamento voltados para a inclusão [10] [11]. Essas são algumas das muitas barreiras existentes na vida dos portadores de DM 1 e de seus familiares.

A omissão do poder público no reconhecimento de um determinado tipo de deficiência não é novidade, o mesmo ocorreu com o Transtorno do Espectro Autista e outras. Foi necessário que o Congresso enfrentasse essa grave injustiça e aprovasse uma lei específica para considerar essa deficiência como tal [12].

Diante desse cenário, mais uma vez o parlamento assumiu o protagonismo na discussão e tenta pôr fim a uma desrespeitosa realidade, que agora é direcionada aos portadores de Diabetes Mellitus Tipo 1. A solução encontrada foi aprovar uma lei que fizesse o devido reconhecimento.

Nesse sentido, a deputada Flávia Morais e o deputado Dr. Zacharias Calil apresentaram o Projeto de Lei nº 2.687/2022 [13], que “classifica o diabetes mellitus tipo 1 como deficiência para todos os efeitos legais”.

Na Câmara dos Deputados a matéria tramitou pelas Comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD), de Saúde (CSaude) e Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC).

Em todas elas o apoio da sociedade e dos deputados foi evidente, possibilitando que a Câmara aprovasse a proposição de forma unânime. Levando a proposição ao Senado, onde se espera dos senadores igual compromisso e agilidade.

Como indicou o parecer do deputado Aureo Ribeiro, relator da matéria na CCJC: garantir a classificação da DM 1 como deficiência é “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo […] dos direitos humanos e liberdades fundamentais” das pessoas diabéticas, além de fazer valer o que prevê a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que é parte integrante da Constituição do país.

O Brasil vive a contradição de ter leis modernas, reconhecidas mundialmente, mas que não conseguem atingir seus objetivos. Neste caso, a razão é a deturpação e restrição indevida na regulamentação e implementação dessas normas.

A consequência não podia ser diferente: pessoas que de fato possuem uma deficiência ficam desamparadas e longe de uma integração real na sociedade.

O Congresso, na tentativa de pôr fim a essa violação, desempenha uma nobre função em busca de justiça e igualdade. E espera-se que o PL 2.687/2022 seja definitivamente aprovado e sancionado ainda no ano de 2024.

Contudo, não pode ser ignorado que a solução definitiva e com maior abrangência, inclusive para outros tipos de limitações, seria o respeito do conceito já estabelecido de pessoa com deficiência.

O que possibilitaria o cidadão realmente demonstrar seu contexto e condições, como ocorre em países mais desenvolvidos, como Estados Unidos [14], Canadá [15] e Inglaterra [16], e, por fim, ser efetivamente assistido e integrado na sociedade.

[1] BRASIL. Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009: Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinado em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, 25 ago. 2009.
[2] Id. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 5 out. 1988.
[3] Id. Lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989. Brasília, 24 out. 1989.
[4] Id. Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015. Brasília, 6 jul. 2015.
[5] Id. Decreto n° 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Brasília, 20 dez. 1999.
[6] RODACKI, Melanie; TELES, Milena; GABBAY, Monica; MONTENEGRO, Renan; BERTOLUCI, Marcello. Classificação do Diabetes. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes. 2023. DOI: 10.29327/557753.2022-1, ISBN: 978-85-5722-906-8.
[7] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do Diabetes Melito Tipo 1. 1. ed. Brasília, 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_clinico_terapeuticas_diabete_melito.pdf
[8] Ibid.
[9] MARTINS, Letícia. O que é ser mãe-pâncreas? Uma reflexão sobre a dupla jornada de quem tem filhos com diabetes. 26 mai. 2023. Disponível em: https://www.momentodiabetes.com.br/o-que-e-ser-mae-pancreas/
[10] BRAGA, Tania Moron Saes; BOMFIM, Diogo Pazzini; SABBAG FILHO, Daher. Necessidades especiais escolares com diabetes mellitus tipo 1 identificadas por familiares. Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v. 18, n. 3, p. 431-448, jul.-set., 2012.
[11] MOURÃO, Denise Machado; MELGAÇO, Natália Mota; FRIAS, Nathália Felícia; DA SILVA, Nayara Benedito Martins; DA SILVA, Roberta Scaramussa; SEDLMAIER, Bruna Martins Grassi; BORGES, Grasiely Faccin. (Des)conhecimento do diabetes nas escolas: percepção de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 33, e33041. 2023.
[12] BRASIL. Lei n° 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Brasília, 27 dez. 2012
[13] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2687/2022. Brasília, 27 out. 2022. Disponível em:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2336404
[14] FALLABEL, Christine; WOOD, Kelly. Is Type 1 considered a disability? Healthline, 18 out. 2023. Disponível em: https://www.healthline.com/health/diabetes-complications#summary
[15] TRUE NORTH DISABILITY SERVICES. Is Type 1 Diabetes a Disability in Canada? S.D. Disponível em: https://tnds.ca/is-type-1-diabetes-a-disability-in-canada/
[16] DIABETES UK. Your legal rights when you have diabetes. S.D. Disponível em: https://www.diabetes.org.uk/guide-to-diabetes/life-with-diabetes/your-legal-rights